crisca1808@gmail.com

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Ao Alano

Não é paisagem o que recobre os campos,
Mas o tempo,
Que tudo enfeita, matiza, traduz.
Não é saudade o que oprime o peito,
Mas o tempo,
Que nos ironiza, espreita, seduz.

Não é o tempo do Eclesiastes,
Em que pra tudo há o momento azado,
O fio condutor da vida;
Não é o tempo da ciência,
Milimetricamente cronometrado,
Nem o tempo da fé, cega ou amolada
Nem portal de boas-vindas
Nem ruela sem saída.

Esse meu tempo é uma sala escura
Só com o lado de dentro
E janelas emperradas.
A paisagem lá fora é uma sucessão
De corredores iluminados
Por luzeiros hesitantes: o amigo
Que pensamos ter,
O amor que ousamos perder,
A morte que sonhamos merecer.

Deriva

Soçobram meus navios
E eu sem praia já não posso vê-los.

Só sobram-me uns rios
As velas rotas do corpo
A vertigem dos apelos
E os meus sonhos marinheiros
Perdidos nalgum mar.

Rotas as velas do corpo
As rotas e o porto
Te revelam: velas
O desconsolado pranto
E desconsola a dor
De não saber quem mais perdeu,
Tu ou eu.

Só sobram desvarios
E desse nunca-mais-te-ver
A grande dor que deu
Porque foste, sem saber,
A parte de mim que mais morreu.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Tenho pra mim que sei lá

Houve um tempo quando eu era metida a espírita.
Durante muitos anos, li tudo que pude sobre o assunto,
fui a sessões, mesa branca, recebi passes, assisti a muitas palestras. Não sei se por mera curiosidade, se por uma enorme vontade de "crer" nalguma coisa. Não importa. O que vale, o que ficou dessas leituras e experiências foi o benefício da dúvida que dei a mim e à doutrina.A Doutrina Espírita me tirou as poucas e rasas "certezas", e me atenazou os milhares de dúvidas.

As dúvidas - acerca de tudo - persistem; as poucas
certezas se extinguiram. O respeito por pessoas
da estirpe de Chico Xavier, não tenho como negar.

Vivi na pele muita coisa "estranha", que um observador tendencioso chamaria de "fenômenos sobrenaturais". Mas quem sou eu pra dizer o que é ou não "natural"?
Conheço todas as "leis" da natureza?

Tenho profunda admiração pelo matemático e pedagogo poliglota (entre outras coisas não menos importantes) Denizard Rivail, vulgo Alain Kardec, uma das mentes privilegiadas do século dezenove. Daí a assinar tudo que ele diz...
vai uma distância - não tão grande quanto eu gostaria.

Se eu tivesse uma "religião", uma crença firme no "Eterno"
ou coisas que-tais, seria embasada na doutrina espírita,
estejam certos disso. Não só porque prima pela lógica,
mas principalmente porque foge do fanatismo.

Hoje, dada a "circun-navegação" em que [literalmente] derivo...
não sei mais nada, ou melhor, sei ainda menos do que sempre não soube.
Isso é bom, acho. As certezas são perigosas, e A Dúvida é tudo o que temos de concreto. Ao menos isto eu aprendi, nesta "longa jornada em busca de mim".

Fato, mesmo, só que, sob alguns pontos de vista, estou viva.
E que um dia essa sopa vai acabar. O resto... iê-iê!

Mediocridade

Devido à hesitação em pintar certas pessoas como vejo,
e usar cores pastéis, ao retratar, por exemplo, a família,
um amigo vive me lembrando que é com bons sentimentos
que se faz péssima literatura. Na verdade o que Gide disse foi: “Já escrevi e estou sempre disposto a voltar a escrever o seguinte, que se me afigura de uma evidente verdade: «É com os bons sentimentos que se faz a má literatura»; nunca disse, nem pensei, que só se fazia boa literatura com maus sentimentos.”

Seja como for, se depender de maus sentimentos e pensamentos, algum dia serei considerada genial.

Evidente que é gozação – mas não sei até que ponto.
Minha única “certeza” a esse respeito é que se ainda não pintei minha guernica foi por pura vergonha. Como expor tanta sordidez? Este pudor, sozinho, já me condena à eterna mediocridade. Imagine-se então que será dessa “literatura” se ao pudor juntar-se a indigência criativa. Melhor seria esmolar à porta do templo.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Augusto dos Anjos

[...]
Porque o amor, tal como eu o estou amando,
É Espírito, é éter, é substância fluida,
É assim como o ar que a gente pega e cuida,
Cuida, entretanto, não o estar pegando!

É a transubstanciação de instintos rudes,
Imponderabilíssima e impalpável,
Que anda acima da carne miserável
Como anda a garça acima dos açudes!

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

B-day

Dizem por aí que o pior daquela gripe perigosa
era o medo que se tinha de a China toda espirrar
ao mesmo tempo - e deslocar o eixo da Terra.

Pois saibam que tive esse medo
no meu aniversário, ontem, tal a quantidade de gente
usando toda a parafernália tecnologica já inventada
pra falar comigo. Toda não, minto: faltou sinal de fumaça.
Mas teve rádio-amador e manuscrito.

Tá certo que num teve festa, mas foi melhor.
Cada presente de fazer inveja à Rainha de Sabá
quando visitou Salomão (foi ela?)

Prosaica e afetuosa ligação do meu amor,
na hora do cafezinho entre uma reunião e outras.
Meu primogênito, a quatro mil quilometros, de madrugada,
na webcan, com cara de sono.
Um Amigo de ressaca,um entubado, um de mal com a mulher,
um de pé engessado e outro que aproveitou a desculpa
pra fazer as pazes comigo.
Tinha nego na fila do check-in, na livraria, no taxi.
Na praia distante, comendo siri-mole.
Na prancheta, arquitetando abrigos pra vaidades inconfessas.
Teve abraço de quem eu não via há muito tempo.
Dois que não bebem em bar, bebendo no bar comigo.
Tio querido direto do planalto central.
Trinta quilos de mimos lusitanos, de amigos virtuais que
se materializaram bem na frente do meu queixo caído.

Teve quem marcasse meia-noite no despertador
pra ser o primeiro a dizer: meio século, né, baranga.
Teve quem se abalasse de longe pra me dar um Veríssimo,
dois dias antes. Quem trouxesse velas artTESÃOnais
cheirosas e lindas de morrer,
e perdesse meia tarde carregando fardo meu.
Teve carradas de abraços e beijos
facebookeados e orkuteados.

Não queria causar inveja, mas dou o
golpe de misericórdia. O maior musico da cidade
chegou morto de cansaço, balbuciou um Aí, beleza?
Arriou no sofá e roncou a trilha sonora mais linda
que já tocou num aniversário meu.
Resultado: foram tantas emoções, e fiquei tão cansada que
a "festa" quase vira velório...rs

Amar é

Sentir que nossa felicidade
é um insulto, se o outro
está de luto.

A Voz

Não chega a ser Inferno.
Paraíso, nem pensar.
Mas salta as raias do purgatório
– e a imagem é muito amena.
Imagine amar alguém des-esperando,
porque não é racional esperar,
não é possível nem viável, não é inteligente,
porque não tem concerto nem nunca terá
porque não faz sentido.
Imagine ter vergonha desse amor,
e quase sempre orgulhar-se dele,
mas às vezes enojar-se, até que a náusea
se transforme no mais abjeto pernicioso deletério Asco.

E no meio da noite sentir que a mão pesada do Nojo
detém o curso da Ternura, antes que ela sulque a face
e deslágrime na ponta do queixo, ou adentre o Olvido.
Na primeira réstia de luz, saber que aí vem
mais uma golfada de espaço-tempo
goela abaixo, e ao poucos nos afoga uma maré
de Nada e Nunca, pra Sempre.
Ao pé de tudo, a Vida corre - ou rasteja?

Besteira. Se há quem faça disso poesia, não serei eu.
Tentava distrair a mente, o corpo, a alma,
cada pedacinho de mim tentava desviar dessa agonia,
o cilício de veludo que é o Silêncio.
O meu silêncio, a assustadora, lancinante presença
de todos todos todos os sons que me cercam,
psicodelicamente.
Um silêncio cujo zumbido surdo e intermitente
oprime,angustia, atordoa.

Respondi e-mails, conversei no MSN.
Fiz um lanche. De repente o telefone.
Voz querida, bem-vinda, oportuna.
Mas não a "minha" voz.

Aí caiu a ficha. Esse silêncio que esmaga.
Essa urgência de viver, a angústia de não morrer.
A desimportancia e inutilidade de tudo.
É que me falta A VOZ.

Anacrônica

Hoje um amigo deprimido
me ligou pedindo colo, e eu tava num
barzinho aqui perto
dando colo a outro amigo deprimido.

Que diabo esse povo faz pra cair em depressão?
Já tô começando a achar que estou fora de moda.

Será que é tão complicado ser feliz, mesmo
afundado na tristeza até o pescoço - pensei.

Aí,de repente chegou um cara grisalho,
meio gordinho, com uma sanfona e um amigo
no pandeiro. Haja Luiz Gonzaga, e eu fiquei
tão leve ouvindo aquelas músicas antigas...

Talvez me falte profundidade, filosofia, consciencia crítica,
essas coisas que gente "culta" acha importante. Sei lá.
Só sei que ainda gosto de estar viva,
de comer buchada de carneiro com caipirinha,
ouvindo forró de verdade.

E a democracia, a política educacional, a previdência,
o sistema carcerário, o tráfico de drogas... que se danem.
Passo muito bem sem me preocupar com eles, obrigada.
Deixem-me curtir minha doce alienação com molho tártaro e
bolinhos de queijo.
Não estou a fim de ir a Durbai.
Não preciso de outros diamantes que não sejam esses,
brihando bem aqui diante de mim, na boca do meu amigo.
Iates, safaris, conta nas Ilhas, perfume francês, roupas de grife.
Tudo que preciso é de amigos por perto, contas em dia,
caranguejo com farofa, filho com saúde.
O resto é amor correspondido.
E de utopia eu tô é farta.

OFÍCIO
Para Crisca

parece quando falas
que vens de terras longínquas
tens uma certa linguagem
entrecruzar de línguas

falas do que falas
como quem cala
segredos
de faca
de ponta
responsável bisturi
de corte preciso
conciso

tua palavra somato-resvala
arde na epiderme
rasga carne
quebra ossos
tua palavra não cala
traspassa

de tantas línguas que dizes
por estrangeira a tua fala
tua palavra
trapaça

aprendiz das línguas que falas
mais que aprendiz
me deixo fazer nas palavras
que lavras

como falas
o que falas
agora
o falo

MERATRIZ.

Ema Besar, poeta cearense

São Paulo revisitado

O Amor não tem adversários.
Padrões. Inimigos.

Explicações.

O Amor não tem cor.
Forma, Textura, Sabor
definidos.

O Amor não possui.
Não toma. Não usurpa. Não exige.
Não constrange, não limita,
não evita, não predispõe,
não intimida.

O Amor não admite a maioria dos
verbos auxiliares.
Não está onde queremos,
não permanece quando esperamos,
não existe porque o pedimos,
mas se o damos.

O Amor simplesmente é nosso
- Se dele somos -

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Meus amigos d'Além Mar

Passei o dia com quatro portugueses
que visitam o Brasil pela primeira vez.
Conhecemo-nos pela internet, há pouco
mais de um mês, mas com meia hora
de conversa já eramos amigos de infância.
Que gente adorável.
Trouxeram-me tantos presentes que precisei
de ajuda para carregar. Coisas não somente
caras, mas preciosas, delicadas.
Mlionários sim, mas de Boa Vontade.

Agora imaginem vocês o meu vexame
com a acolhida que tiveram em Fortaleza.
Para começar, quando meteram a chave
no apartamento, meus amigos deram de cara
com dois rapazes "namorando" na cama de casal.
Nada contra eles, evidente, mas foi uma bela gafe
pra um Hotel 4 estrelas na Beira-Mar.
Refeitos do constrangimento, e remediada a
situação com mil desculpas e tal,
passamos o dia nos divertindo, com rendas
e badulaques, caminhadas, camarões e muita risada
das piadas de português - e de brasileiro.

Educados, comentaram uma única vez,
o incidente no hotel, como falha admistrativa.

Aí, enfrentaram com elegância os preços exorbitantes
e a falta de qualidade dos serviços, dos produtos, de tudo.
E o descaso das pessoas em geral, a falta de ética.
De honestidade, presteza, higiene, educação.

Meus novos amigos,nem uma palavra desagradável.
Sempre sorridentes, humilhantemente gentis.
E eu que sempre tive tanto "orgulho" de ser brasileira...
fiquei com a cara tremendo. Colonialismo o carái.
Vocês também teriam morrido de vergonha.

sábado, 14 de agosto de 2010

Temeridade

Publicar é uma temeridade. Consola-me
saber que quase ninguém tomou conhecimento
ainda. Até porque não sei que serventia pode
ter um blog assim, por isso evito divulgar,
exceto entre os amigos. Não passa de um amontoado
de devaneios, cartas, jogos de palavras,
pseudopoemas pueris, nada de especial.
No diário de muitas adolescentes do século
XIX havia textos mais substanciosos.
Mas enfim... engana o tédio,
já é alguma coisa.

Sangria Atada

Que vale o amor se não germina
E de seus ramos não sorvemos
Sombra e fruto?

Que vale o amor quando se esquiva
E de nenhum sol faz proveito
Num eterno luto?

Amor trancado no peito
Que não salta as entrelinhas
Não confunde ou angustia,

Não consola e não liberta,
Não urge, não alivia,
É sangria atada.

Amor assim é solo de caatinga,
Poço seco, folha ao vento,
Nada.

Balada dos Escolhidos

Há portas abertas para todos os destinos
Mas uma só estrada bipartida
De que a intervalos de medo
Palmilhamos depressões e cimos.

Pesamos como a trave nos caixilhos
De janelas que dão pro Sonho
Ou nos quedamos lassos, desde ontem,
Nauseados, na grade e no tombadilho
De um navio cujo rumo ignoramos
- O timão a cargo de Caronte.

Tenebrosa calmaria nos navega
- Ou nos deriva –

Ou o vento enfuna a vela
Da tormenta, e nos abriga.
Somos o Fardo, e provisões apodrecidas
Nosso hálito incomoda qual remorso
Da que por vaidade aborta
Ou a lâmina afiada nas línguas de fogo
Da lareira morta.

A ausência de tudo nos chamusca a pele
Embala-nos a voz de uma paixão imbele
E nosso jugo não é leve:
A todo custo, permanecer.

Até aonde alcança a vista baça
E de onde quer que se perscrute
Todo que enxerga pode ver:
Nem curso d'água nos perpassa,
Nem sede nos assusta,
E ser feliz é quanto basta Ser.

Somente o Grande Nada é concreto,
Esboçado na cal viva dos presságios:
Ao largo de caravanas e adágios
Gozamos os oásis de todos os desertos
Até a vista escurecer.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

1026

Ao que morre, Amor, basta-lhe tão pouco:
Um copo d'água para a sede
o rosto discreto de uma flor
realçando a parede,

A lágrima do Amigo, talvez um leque,
E a certeza de que ao menos um ser
No arco-íris não verá mais cor
Depois que ele se for.

Emily Elisabeth Dickinson

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Taí

Você disse que só comenta
texto publicado.
Taí. No mínimo uma postagem todo dia,
textos novos e antigos.
Mais público, impossível.

Esboços

Perdi esboços de mim
No que me fizeras
E soube então que o amor
Que me sentiras
Não cresce nem atrofia
Somente porque existiras.

Os olhos me silenciaras
E as paisagens internas povoas
Em raras melodias – e perfis.

Não me abranjo: ocupo de mim
Os só-espaços em que me fugiras.
Se hoje vens eu não te desdenhara
Como um dia fiz.

Gaiola

Eu posso ser feliz assim
Inda que me falte a liberdade,
Dizem de mim.
Água fresca e gergelim
Semente de girassol
Inda que me falte o arrebol.

Eu bem que estou seguro aqui
A salvo de rato e de felino
E da maldade dos meninos
Que andam pela aí.

Mas é que eu preferia a sede
A fome e os perigos – tantos –
A viver assim chorando nesse abrigo
De quem pensa que isto é canto
E canto para lhe agradar.

Eu bem queria era poder falar
E dizer a esse protetor infame
Que eu não tinha plumas, mas arame,
Se não fosse feito pra voar.

Nocaute

Dia desses escreveu tô com saudade, e que se dane o resto,e ainda há pouco me ligou:
- Oi. meu peito virando o Grand Canyon, as pernas, geléia
- Oi. que ele pode me dizer que eu já não saiba?
- Como tatu? que saudade eu tinha dessa voz!
- Indo. mais de dois meses sem esse abraço!
- Não aparece, não telefona, só fala comigo por email... como faço pra essa conversa durar?
- Tu acha pouco, email? preciso achar um jeito de fazer ele falar mais...
- Acho. Num quero mei, quero inteiro. finge uma leveza que não sente.
- Tu tem, inteirA... maldito nó na garganta!
- Eu sei. Mas quero te ver. nunca pensei um dia ouvir isso com tanta urgência
- Dá não, ó. Fazendo jantar pro meu filho e a namorada. bendito talento pra mentir sem gaguejar
- Hoje é aniversário da Maria. ai que lindo, inventando pretexto pra não desligar...
- É mesmo? vou ligar pra ela. Preciso me sentar, preciso beber água, preciso de um cigarro!
- Tá. [...] Então tá. silêncio constrangido
- beijo.
- Outro. garra gelada no peito. Cigarro pra disfarçar. Ninguem pode perceber que eu morri faz tempo.

Dez minutos depois:

- A-lô. digo com enfado. NUNCA pensei que ligaria de novo
- Vou te buscar. respira tenso; teme que eu recuse, teme que eu aceite, já se arrepende de ter ligado
- han? meu coração correndo em lava, no Grand Canyon escavado na primeira ligação
- Tô indo te buscar pra tomar um vinho aqui. diz de um fôlego só, pra me deixar sem graça de dizer não
- Aqui onde, na tua casa? agora? meu deus, meu deus, meu deus! num suporto mais ficar sem vê-lo!
- É. Agora. impaciente, inseguro, de saco cheio de mim
- Quem taí? pergunto, já sabendo a resposta, e a impossibilidade de suportar a dor de saber
- Eu, nosso filho, e... você sabe... doido pra exibir a felicidade, coisa compreensível, mas sei q não suporto ver
- Pois é. Tu sabe q eu não vou, pra que chama? meio-silêncio hesitante, doído, de ambos os lados do fio
- Ah, tá, num sabia não. Desculpe. lamento ser feliz, e vc não, fazer o quê?
- Sabia, sim, tá lá nos emails. Pensei q tinha entendido.. garganta fecha, lava vira geleira desabando
- E eu, pensei que NÃO tinha entendido. Sem traumas...desanimado, triste, frustrado.
- Beijo.
- Outro.peito congela

E o fundo musical era:

...Vida, vida, vida!
Seja do jeito que for
Mar, amar, amor
Se é dor, quero o mar dessa dor!

Revirando o baú

É, vou indo. Não sei por que, mas alguma coisa mudou.
Pra melhor ou pior, também não sei.
Olhando bem, nada é diferente.
Olhando de novo, está tudo igual.
Continuo no mesmo tempo, espaço, ocupando as horas com
os minutos e os minutos com os segundos, cada um deles
pesando como chumbo.

Mas já não dói tanto - seria impossível
suportar. A gente acostuma com tudo.
Quando cheguei da praia tinha um recado dele.
Respondi com a antiga leveza, como
se os ultimos dois meses não existissem.
Melhor assim. Entre nós não deve não precisa
nem pode haver distância, além da geográfica.
Nem digo "física", porque nunca o senti
fisicamente longe. Nem mesmo agora.

Mas parece que pra ele já está de bom tamanho.
Posso "sentir" daqui sua impaciência.
Nem toda a felicidade do mundo pode fazer aquela criatura
se conformar de querer e não poder - seja um picolé,
um contrato, um perfume, ou o abraço
de um amigo - quando e como quer. Chega a ser
engraçado. Que urgência é essa de me ver?

Claro q estou, não morrendo, mas vivendo de saudade.
Mas resolvi nunca mais depender de um abraço.
De uma presença. Resolvi me bastar - já não era sem tempo.
Minha porta já não está escancarada pra ninguém.
Os amigos tenham comigo a consideração que sempre
lhes dispensei: telefonem antes de me visitar, pra ver
se estou em condições emocionais e com vontade de
receber visitas. É o mínimo respeito que uma mulher quase
menopáusica e com uma doença incurável merece,
né não?

Tardiamente

Claro que me arrependo.
De mais coisas do que gostaria de lembrar.
Só tento não afundar em autocomiseração.
Eu disse "tento", não disse que consigo.
Me arrependo de não ter mordido essa minha língua
de trapo em milhares de ocasiões.
De muitas vezes não ter tirado os olhos do meu umbigo,
quando à minha volta havia coisas vitais
- e eu deixei passar.

De ter amado mais com a mente do que com as
vísceras.De ter me irritado mais comigo e menos
com algumas pessoas. De não ter cuidado melhor do meu filho,
não ter lhe dado mais chances de ser melhor que eu -
imagine onde ele chegaria!
De ter me exposto a tantos vexames e temeridades.
Puxa vida, essa lista não tem fim.
Agora... é esperar que falte energia,
pra o ventilador parar de espalhar
o que joguei nas pás.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Bolor

Me assusta esse veloz da vida,
A ciência de ser carne e sonho
Por legado transeunte.
Passeia o tédio nos jardins platônicos
Na cozinha de Villa-Lobos
E nos becos londrinos
Impregnando de bocejos
As caves da mente.

Além, o domínio fictício dos espaços
A bruma da Arte nos painéis do Novo
O Moderno e a Modorra, embolorados.
Ah, o caráter sem-rédeas do Tempo!

Aqui e ali, entediados, dormitam
Os cocheiros do Ócio
E em longes latitudes
Coçam-se as costas ao paxá.

Dançarinas esvoaçam, pairam e revoam
Em torno de uma idéia pálida
E assusta o fantasma desenluvado
Da matrona sem brasões
Em meio às ancas de meninas-putas
A espargir orgíacos odores
Em festins antigos como a castidade.

Nas sacadas dos prédios tombados
Não há um único pássaro,
Uma demão de polidez;
Me assusta a solidão dos prédios,
E sua concretude.

O Tédio não, esse já não assusta
E a Solidão não mete medo:
Coabitamos, pachorrentos,
Tecendo longos comentários a respeito.
Gosto deles: não pedem silêncio
Quando desvario,
Não me chamam louca se emudeço –
Não se dão a intimidades.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Classificados

Meu reino por um vassalo 
Meu treino por um cavalo 
O peixe por um anzol 
O ventre por um rebento 
A vida por um alento 
Os olhos por um farol 

O peito por um fuzil 
O leito por um cantil 
O sangue pra quem o estanque 
Minhas mãos por um ancinho 
As pernas por um caminho 
A voz por um palanque 

O asfalto por um rosal 
A fé pelo Santo Graal 
A mente por um par de asas 
A lucidez pela Beleza 
A paz por uma única certeza 
O paraíso por morrer em casa; 

O eterno por um instante 
A boca por uma chance 
E o futuro pelo olvido 
De tudo que hei sofrido. 

domingo, 1 de agosto de 2010

Eros Perdido

Tem os pés fincados num charco
De virtudes colossais
Mas os braços se lhe ataram
A um cipoal de nuvens em que oscilam
Perversões abissais.

Brotam-lhe asas dos artelhos
Pesam-lhe tufões pelos jarretes,
E no casulo do peito
O coração engendra o templo
Onde os olhos vidrados
São janelas rasas e invertidas.

No pátio sem fontes
Cupido jaz petrificado
Entre o limo e o arco retorcido,
Espetado em sua própria seta.
O Amor olhou pra trás, e entre as ruínas
desse templo perdido
Seixos de vaidade para sempre rolarão
A transmutar em sal seu coração.

Exílio I

As lembranças de ti
São sentinelas a postos
Me atravancando as saídas.

Tenho as pontes vigiadas
por fileiras de remorsos
As torres sitiadas pelos meus mortos
Queridos - são minhas fronteiras.

E porque os amo tanto,
Até me apraz que já não vivam.
É preciso dormir para encontrá-los
Distinguir ausência de calor e frio.
É preciso adormecer pra divisá-los
E as retinas clamam por Estio.

Ergo paliçadas e vigias
Lubrifico bacamartes e gazuas.
Vejo mãos em meu socorro –
-elas brotam das trincheiras
Mas não são as tuas.

Pontual

A morte sobrevive de romper
as nossas veias
E escandalizar o nosso medo.
Retalha a carne do Ser
E a mancheias
Espalha os nossos segredos.

A morte tergiversa,
Ilude, sofisma,
Enquanto nos devora.
E tem o maldito costume
De não perder a hora

Lume

A alma tem asas
Mas suas patas pesadas
Patinam no lodo do ciúme.
Trago-te o círio dos desejos
Desatentos: vacilante lume.

A Morte é ágrafa, mas tem alma erudita
Poliglota, e mestre de retórica
Mas pra ironizar não rima
E só usa a minha língua.

Foram tantos os acenos
Que entre nós
Já não cabem despedidas
No dobre dos adeuses
Antes e depois
Somos sempre sós.